Bem-vindos à nova dimensão... seqüenciador de sonhos online.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Take these broken wings...

- Shhhhhhhh...

Ali não havia mais ninguém. À beira do lago, repousavam somente aqueles dois corpos e assim permaneceriam noite adentro. O silêncio à volta quebrado pelo eventual borbulhar das águas, quando o espelho vinha tentar mostrar a ela tudo o que lhe atormentaria. O rosto tão belo escondido entre os braços do amante, que apenas a acolhia em toques e murmúrios.

Estava acostumado ao caos, a dançar pelos acontecimentos como se não pudessem tocá-lo fundo demais. Ele, que sempre deixara-se ler as trilhas do destino, ver as finas linhas do tear do mundo e estar pronto para cada novo turbilhão. Nunca fôra o tecelão. Não imaginava a sensação de ver aquela trama ir contra sua vontade, pois jamais tivera a pretensão de fazer mais do que talvez puxar um ou outro fio, com jeito de criança testando limites.

- Muita coisa mudando... - Aquela voz tão gostosa o trazia de volta dos devaneios e seus dedos voltavam a acariciar os cabelos macios da amada, sentindo-os deslizarem, fugidios, tão finos. Não havia dor àquela voz e isso em parte o incomodava. Sabia lidar com a dor alheia, muito bem. Sabia curar as chagas da decepção, fechar as feridas de mágoas e do abandono. O que sentia ali era novo. Tinha jeito de orgulho ferido, mas era tão maior.

- Shhhhhhhh... - que palavras ele podia buscar? Era inútil fingir que entendia, então apenas deixava-se acolhê-la. O calor de seu corpo, naquele abraço que se fazia casulo, tentando conter o imensurável. Os grandes braços azuis descobrindo-se horizonte, por alguns minutos que fosse. O espelho d'água borbulhando uma vez mais. A ordem plácida quebrando ondas de um caos não tão familiar. Porque sim, ele conhecia a desordem. - É tão importante assim?

Por um momento, esperava que aquela pergunta lhe rendesse um olhar tão penetrante que faria sua alma sangrar, mas para surpresa dele, ela apenas continuava fitando o infinito. Aqueles dedos tão firmes, movendo-se como se pudessem desfazer a tapeçaria do infinito, para começar de novo. Ela não respondia, mas nem precisava. Aqueles gestos demonstravam que ela não se renderia.

Tão tenaz. Ele se deixava admirá-la. Envolvia-a com seus braços e suas asas, demoradamente, fazendo-se casulo. Até que ela, tão grande novamente, surgisse por entre as penas, com jeito de borboleta experimentando o ar, dona das próprias vontades e do mundo. Não demoraria, claro.


.... Today i'm sad, de ~machine9 no deviantART.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Espelho felino... *no altar de Bast*

Meu gato está gordo. Juro.

O animal me olha de volta e dá aquele miado fraco de quem debocha da minha constatação, mas era impossível não ver. No verão o pêlo cai, a casa toda vira um caos de tufos brancos e meus ternos pretos me condenam por isso. Mas mesmo sem toda a pelagem, ele continua fofo demais. Deve estar gordo, só pode. Do fundo daqueles olhos de um azul tão forte, ainda me questiona com um não tão sonoro "e daí?".

Academia... será que acho uma academia pro gato? Ele devia malhar, tá precisando um pouco, tem uma escada inteira pra subir entre o terraço e o primeiro andar do apê. Vai que tem um troço no meio do caminho e capota. Mas ele anda sem tempo pra ficar malhando, tá acordando muito cedo. Vai ver se mudar de ração, ou de repente se eu arrumar pra ele mais atividades. O tempo tá curto, mas acho que sempre dá pra encaixar mais uma coisinha.

A agenda do bicho anda cheia. Fato. Não sei o quê tanto faz, mas ultimamente só o vejo correndo de um lado pro outro e, quando chego em casa tarde da noite, estamos os dois muito cansados e caímos na cama, um acolhendo o outro. Claro, primeiro ele mia, para clamar pelo toque. Fica esparramado, faz cara de desinteressado só pra fingir que não faz tanta questão assim, e então chia pra mostrar que o carinho é um direito adquirido do bicho de estimação e não um dever do dono.

O gato certamente anda fazendo das suas com as gatas dessa vida, nem que seja só o eventual flerte felino. Ele simplesmente não consegue, mesmo com as que lhe distribuem as eventuais patadas. Acho q até curte uma unhadas que toma, aqui e ali. Uma vez ouvi a frase q "sem um pouco de dor, não vale a pena". Inspiradora. Ele me olha como quem concorda.

O bichano já deve saber até quanto tempo eu levo pra desmaiar de sono. Aposto q ri de mim nas noites q tiro só o sapato pra uma "deitadinha rápida" e acabo dormindo de roupa, com a cama ainda feita. Por trás daqueles olhos imensos, debaixo das orelhas pontudas, guarda lembranças de quando nós dois não corríamos tanto assim, pra cuidar de tudo a tempo.

Mas uma coisa está dada... mesmo tão ativo, meu gato tá gordo. A veterinária vai me dar esporro, semana que vem quando vier vacinar. E só nesse ponto eu e ele divergimos. Já é o segundo cinto q perco, largo demais, em 4 meses. E o gato nem pode ficar com as minhas roupas.

*momento "EGO on"*

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Bom dia *refletindo-se no espelho*

Era manhã clara de dia ensolarado, aquele céu azul que nem filmes conseguem te mostrar, por mais que tentem. Nenhuma nuvem, só aquele jeitão de frio com calor do sol. Um dia fresco, bom e curioso. Porquê curioso? E isso interessa, à nossa história? Não, não, quem dita aqui sou eu, narrador. Você senta e lê ou troca de página, mas essas palavras são minhas. Só por mera convenção, que você é influência, pequena que seja, sobre o que estou digitando, então dá licença? Seu único poder é o controle remoto, mas esse texto ainda estará aqui, quando você mudar de canal.

Enfim...

O terno combinava com o carro, que combinava com a mochila, que combinava com as pupilas dos olhos. A gravata combinava com a íris, que se compunha bem com a camisa e dava um aspecto geral muito bom. Só não combinavam a avançada calvície com a idade nem o ar sério de toda a roupa com a pauleira desenfreada no carro, mas tudo bem. Para as pessoas nos carros ao redor, isso era um problema passageiro. Para ele, catarse. Pretendera estar em seu destino às 8h. já eram 8h25 e estava ainda a seis quadras do lugar. O rádio tentava consolá-lo: "O trânsito está ruim pela cidade toda, a Comlurb tem dois caminhões tombados em grandes vias, impedindo a passagem." Era o consolo de ver que aquilo era um problema de todos... é verdade que miséria quer compania, afinal, mas ele não fazia questão de saber que o inferno não se resumia só àquela rua.

Ainda assim, era o céu de um dia agradável e isso o acalmava quase tanto quanto os berros junto à voz do vocalista, nas caixas de som do carro. Atender o telefone não lhe faria muito bem, então simplesmente ignorava as duas primeiras ligações. A terceira, no entanto, soava importante e ele alcançava enfim o bolso interno. "Dois funcionários faltando e um avisou que chega atrasado." Claro, isso no dia que ele não estava lá. E porque não? "Um no telefone, três na recepção e boa sorte. Mudem os turnos de almoço e pelamordedeus jogo de cintura, por aí." A voz do outro lado não soava muito reconfortada, mas compreendia a situação e tentava acalmá-lo. Pra sorte dela, ele já estava calmo.

"Tudo dando errado, né?" A voz vinha de dentro do carro e ele apenas sorria, pensando no tom daquela pergunta e qual seria o melhor para uma resposta. Não precisava nem falar, de tão alto que a certeza ecoava em sua mente. Não, não era tudo dando errado. Eram os imprevistos contornáveis, de um dia que vinha cobrar alguma atenção, para que ele não se dispersasse demais na beleza daquele céu. Eram as coisas tomando rumos novos, mas tão certeiros quanto a mente dele se deixava ser, nas soluções que vinha tentando encontrar desde que acordara. Era nisso que ele era bom. Era isso que ele faria. No linguajar tipicamente "bullshit" administrativo, o tinham como um provedor de soluções.

Passaria daquele dia, sabia que ele terminaria tão bem, de alguma forma, que todos aqueles problemas pareceriam ridículos, ínfimos. As vantagens de todo o caos do trânsito surgiam na forma de vagas para escolher. Uma à sombra, por exemplo, tão perto de seu destino que acomodava o carro com aquele jeito certo. Os clientes ainda não haviam chegado, presos no mesmo trânsito de que acabara de sair. Acomodava-se e decidira aproveitar o tempo.

Abrindo o laptop, decidiu que escreveria uma crônica sobre um ótimo começo de um dia promissor.

Bom dia, leitor ou leitora.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Findar II *do diário do Andarilho*

A madrugada seguia por mim, enquanto a chuva caía torrencial e van alguma queria levar-me para a Central do Brasil. Deveria ter me preparado melhor, mas havia bem pouco que poderia fazer agora. E pelo jeito q todos os motoristas chegavam anunciando que não pretendiam voltar, o caminho de volta ao Rio deveria estar bem ruim, com tanta água. Sobre a plataforma, já éramos o suficiente para lotar duas viagens e mesmo assim nenhuma van de volta. Até, claro, a mais ferrada de todas surgir do nada, desembarcando uma lotação naquela rodoviária de interior e anunciando que voltaria.

Seguiria até o destino final, então sentei-me ao fundo, em um canto. Ao meu lado, um pastor evangélico negro trazia sua bíblia e me cumprimentava, antes de pegar o celular para avisar a alguém q finalmente havia conseguido condução de volta à capital. Em meio à conversa, um dado curioso: "Fui comprar os sapatos e vieram me chamando de pastor, daquele jeito, sabe? Quase perguntei se me preferiam de volta nas drogas e no crime." Ao nosso lado, sentou-se um senhor fedendo a álcool que não sabia indicar onde precisava saltar. Todos demorando a se acomodar, bem mais gente do que deveria caber, ali. Mas fomos.

Em meio à jornada, o pastor lia Pedro: Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo; Se é que já provastes que o Senhor é benigno. A página terminava aí, junto com meu interesse, e fui dar conta de passar meu próprio tempo longe das palavras dos primogênitos e da igreja do Filho. Livrinho de Sudoku em mãos, estava entretido.

Central do Brasil. A van mais lerda da história me deixara lá depois de 00h40 e encontrei o ponto do 184 vazio. O pastor havia seguido qualquer outro caminho. Quando cheguei à plataforma do meu ônibus, já havia um outro rapaz, 30 e poucos anos, talvez, e ficamos aguardando. 3 carros vieram e os 3 avisaram q já dirigiam-se à garagem. 01h25 o homem pergunta-me:

- Quer rachar um táxi até o ponto final, em Laranjeiras?
- Como sabe que vou pro ponto final?
- E porquê não saberia? Mas a 3 quadras daqui passam o 497 e o 498, tbm. - Eu sabia, mas não costumava caminhar até lá. Era em si um lugar bem ermo. No entanto, fomos.

Em meio à espera, dois homens vieram ao ponto. Um deles, mais baixo, enfurecido. O outro um homem mais alto, forte, carregando uma cesta básica. O primeiro relatava de como lhe haviam roubado a mochila. "Não tinha nada de valor lá! Eu não tenho nada de valor! Só minhas roupas do trabalho, meus documentos, cara. Meus instrumentos. O q me define!" O homem que estava comigo começou a sorrir e me olhou de soslaio, antes de conversar com o revoltoso.

- Levaram mesmo? Mas na mão grande assim? - "Assim, cara. Porra, hoje quem me olha torto eu pego."
- Os justos pagarão pelos pecadores. - "Issaê! É bíblico, né? Mas é isso mermo! Quero porrar alguém hoje. Os justos pagarão pelos pecadores! Minha mochila, cara, porra!"

O homem ao meu lado instigava-o a falar cada vez mais. O rapaz gritava. Quando veio o 498, sentou-se, furioso, ficava dando socos na cadeira. Dizia q queria pegar um. E repetia o tempo todo "Os justos, cara... alguém vai pagar por esse pecador filho da puta que levou minha mochila." O ônibus estava mais sujo q a calçada. Terra virara lama, latinhas de cerveja vazias, duas, rolando pelo chão. Várias pessoas lá dentro, o homem incomodado e incomodando, o grandalhão sentado atrás dele e eu e o rapaz da Central que me levara até ali sentados no fundo. Até que ele se pronunciou deixando que apenas eu ouvisse.

- Tá vendo? Isso é bíblico. - E começou a rir.

Começou a conversar comigo sobre o quão insanas se tornam as madrugadas. Que mundo é esse, de ataques a esmo, porque todos supostamente somos filhos de Deus. E um filho honesto, trabalhador, sendo roubado de tudo o q tem. Uma mochila. Roubaram-lhe tudo o que tinha, que ele carregava às costas. Me fez a pergunta:

- Quanta gente já perdeu igual, suas mochilas? - Foi quando meus olhos se abriram para as sombras em volta e percebi com quem eu falava. Toda a violência que se construía naquela cena, todas as palavras e até onde aquele homem me levara. Observei-o sorrir, quando o incômodo do passageiro se tornou demais e o trocador foi ter com ele. O ônibus parou, a briga havia estancado, as pessoas tentando separar. O assaltado berrava.

Pude ver aquele homem perdendo asas... Não as dele, mas aquela raiva era a de um caído. Ele provocava-se com a mágoa de um anjo abandonado. Ao meu lado, outro sorria:

- A madrugada de um trabalhador. Revoltado, incontido. - Quando separaram tudo e o ônibus recomeçou a andar, o trocador olhou para nós, lá no fundo, os únicos que não esboçavam reação, em meio à confusão. A gravata rasgada e uma cruz pendendo do pescoço.

Os dois saltamos perto do ponto final do 184 e caminhamos. Ele me falava, como talvez falasse há eras atrás:

- Aquele cara tá certo, sabe? Tem horas que violência só se pode revidar. Violência gera violência, então pra quê ficar parado quando te provocam?
- Existem momentos, talvez...
- Quer momento melhor que às duas da madruga?
- Tem horas que parece que o demônio vem mostrar seu exército, orgulhoso.
- Do jeito q tá fácil pra ele, estranho seria se não fizesse.

Ao alcançarmos a esquina de minha rua, falou-me:

- Valeu, cara, boa noite - Virou-se em um caminho totalmente oposto, voltando a descer as Laranjeiras. Só respondi:

- Boa noite, Rei das Moscas.

E Beelzebuth sorriu, antes de ir-se.


Beelzebuth, de =Drochfuil no deviantART.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Findar. *narrado por Espírito*

Avenida Rio Branco, um ponto de ônibus, 22h20. Ele parecia cansado.

Percorrendo suas novas trilhas, com todo jeito de caminho antigo revisitado, ele por vezes deixava-se dar sinais de certa exaustão. A respiração ofegante, o olhar vago, mas nada indicaria isso mais do q as olheiras. Ele nunca tivera olheiras, nem em sua adolescência tão notívaga e isso era em si curioso.

Por alguns instantes, deixara-se crer que o pior houvera passado, que a corrida tinha chegado ao fim e que tudo voltaria aos termos com os quais se acostumara ao longo dos anos. Mas não. O céu trovejava uma vez mais e anunciava que haveria mais a experimentar. O guarda-chuva fazia bem pouco ante o corredor de vento que a avenida se tornava. Um vale entre arranha-céus.

Cada ônibus que fazia silhueta ao longe era alvo dos olhos atentos daqueles que ansiavam por um caminho pra casa. Que aguardavam para sair de debaixo daquelas gotas pesadas e ganhar algum conforto, ainda que pequeno. E ali estava ele. Molhando-se o quanto fosse, no esforço de proteger a mochila. Na cabeça, toda a malha de informações tentava se ordenar em algo coeso: ativos, passivos, patrimônio líquido, PDD, CPP e outras siglas frias. Mais frias que aquele vento.

O olhar se aguçava, tentando divisar os números da próxima condução, que vinha. Não era sua linha. Esforçava-se em tentar mudar aqueles números para o 180, tão esperado e demorado. Mas nada acontecia. Como todas as noites, só que pior por causa da chuva. Relâmpagos rebatiam por aqueles pináculos de vidro e aço à sua volta, até seus olhos. Gostava do desenho que faziam, cortando os céus da noite. Invocavam a luz ante o ébano de um céu repleto de estrelas e janelas acesas para o cerão.

Quanto tempo fazia que estava ali, de pé, sentindo as calças jeans cada vez mais pesadas, dos pingos de chuva? O vento piorava, a água também. Caía com jeito de que deveria molhá-lo e ele demorou a entender que precisava. De algum jeito, um elemento que não era o seu vinha tentar lavá-lo, esfriar o corpo de um dia pra lá de corrido, suado e quente. O guarda-chuva há muito ficava apenas sobre aquela mochila. O vento cada vez mais teimoso.

O 180 vinha, enfim... e, como em certas noites, ignorava aquele ponto de ônibus entre o Edifício Avenida Central e a Almirante Barroso e o rapaz que lhe fazia sinal, tão claro.

...

Estação de metrô da Carioca, 23h25. "Integração Cosme Velho, por favor." Ele soava cansado.


City in Motion, de =0O-Rein-Oo no deviantART.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Em fuga II *sussurrado por Angelique, à fogueira*

- ... inferno.

Cada novo corredor era exatamente igual ao último e ele já se cansava das mesmas paredes escuras e do mesmo horrível cheiro de mofo. A umidade do ar fazia do suor um incômodo grudento, as calças já com a barra tão suja e puída que jamais se diria que algum dia foram tão elegantes. O Andarilho Cinzento amaldiçoava-se por não ter imaginado que Naquela noite teria de percorrer o Véu, uma vez mais. E ali estava.

- Feito o último... como sabemos que é o caminho certo?

A voz da elfa menina não o incomodava tanto quanto a verdade por trás daquela pergunta. - Sem um oneiromante nem a bússola, não sabemos. Não temos opção. - O único som que os dois faziam eram os leves passos da princesa sobre as folhas secas pelo chão. Foi fácil ouvir o primeiro soar de uma corneta de prata, ecoando pelas rochas pontiagudas que os cercavam. A chama da tocha à mão do guerreiro silencioso bruxuleava como se prestes a se apagar. - A Caçada. Não temos mais tempo, milady Catarina. - O cinzento segurava a menina pelo pulso e a puxava atrás de si. Mesmo correndo, ele não emitia um som sequer.

- Como pode? Ele chamou os Caçadores sobre nós... mas ele é um de nós... como pode? - A menina começava a respirar ofegante, tentando se esforçar para acompanhar a marcha veloz de seu protetor. Aquele sopro grave lhe arrepiara até os ossos e só o puxão de Rogério a trouxera de volta do torpor do medo. Corria novamente, sentindo o Sonho que os rodeava reagir ao medo e à ansiedade, como se as pedras se fechassem ainda mais sobre ambos. Pensava que a oneiromante estava tão longe dali e deixava uma das frágeis mãos esticar-se até o sobretudo do Andarilho, agarrando-o para não se perder na corrida desabalada. Pedras e plantas pontiagudas rasgavam-lhe o já puído vestido claro, lanhando as pernas e os cotovelos.

O segundo soar da corneta estava perto demais. Rogério corria à frente, mas logo tomava a princesa pelo pulso e esta sentia as próprias pernas falharem em acompanhar a velocidade daquele cavaleiro. O lugar parecia tentar impedi-los, mas ele se recusava a parar.

- Bia... desculpa... - Ele murmurava para si mesmo, ao perceber uma clareira que surgia em meio àquele labirinto frio. Um poço antigo e em ruínas erigia-se do centro do local. O guerreiro não hesitava por um segundo sequer, antes de se jogar com Catarina, praticamente de um salto, puxando o braço da menina e impulsionando-a por sobre aquela mureta desgastada.

- Ãhn? O q? - A menina não via à frente, seus olhos assustados haviam percebido os cães de caça dos Fae aproximando-se rapidamente e por um momento se desnorteou. Seu protetor a arremessava naquela abertura e ela percebia o escuro espelho d'água aproximando-se rapidamente. Mal tinha tempo para erguer suas forças e abrir uma passagem de volta ao mundo que conhecia. Mas antes da travessia, ainda olhava para cima, na esperança de ver o Andarilho saltar atrás de si. Uma lágrima soltava-se de seu rosto, percebendo que estaria só, do outro lado.

O rasgar do vento ao seu redor era trocado pela sensação de ir atravessando uma série de panos e lençóis, a queda freando-se daquele jeito brusco e o corpo girando desajeitado. Os cabelos colando-lhe à face, todos os sentidos trazendo-lhe aquela mudança súbita de ares. A claridade trazendo o medo de abrir os olhos. Os dedos sentindo o frio concreto e todo o corpo assolado por uma fina chuva.

Ali, deitada, a princesa da primavera esperava não ter que admitir que estava enfim só. Respirava fundo, sentindo o frio tomar-lhe os ossos, aos poucos. Chorava, em silêncio...

 

Em fuga - parte I