Bem-vindos à nova dimensão... seqüenciador de sonhos online.

terça-feira, 31 de março de 2009

Valsas *coisas a 4 mãos - IV*

Por: Sisa e Troll

 

Enfim, vocês adentraram o Palácio Elétrico. Aqui, no imenso salão, onde mesmo as sombras temem a luz. Aqui, o incorpóreo mundo astral se torna mais uma vez carne. Aqui, vocês confrontarão seu passado. Um grande baile de máscaras. Os convidados do Palácio, tantos e tão grandes ou pequenos, deslizando pela pedra fria, rodopiando ao som da valsa no cravo. Teclas são tudo de que o Rei consegue arrancar melodia.

Depois de horas ao seu lado, cada vez mais encantada, cada vez mais conformada que nada ia rolar, você me pegou pela mão praquela dança. E depois da dança, segurou meu rosto e me deu um beijo maravilhoso. E aquele abraço. A dança, o beijo e o abraço falaram mais que todas as palavras do mundo, mas mesmo assim eu ouvi as palavras: “Quis fazer isto o dia todo”. Sim, as palavras vinham, mas só pra reafirmar o que seu corpo já dizia.

Aquele vulto em pleno giro, valsava com toda a beleza do amor novo e a ingenuidade dos corações vigorosos. Não havia dúvidas no fundo daqueles olhares, um fixo ao outro, e os sorrisos por si só iluminavam o salão. Mesmo sombras, os dois se faziam presentes como um vulto de luz pálida e agradável. Antes da dor vir rasgar chagas, como eventualmente farão em qualquer amor que arde intenso.

Suas palavras têm pra mim um significado especial, porque existem pessoas que falam, se expressam, vivem através de palavras e não sabem como agir quando têm a pessoa ali, ao alcance das mãos. Aí fico lembrando desse seu jeito de quem fala pouco, mas sabe o que quer, e sabe agir. E de repente mais uma vez nossa história passou como num filme na minha cabeça, “repetindo, repetindo, repetindo, como num disco riscado”.

E a valsa no som seco do cravo, tornando-se cada vez mais forte, como se as mãos do músico pudessem se inspirar na dança, e não o contrário. Quando por um momento nada mais percorria o salão senão aqueles quatro pés, detrás dos imensos espelhos. O vento percorrendo todo o Palácio, os silvos do ar entrando pelos vitrais rachados. Um sorriso canhestro à face do Monarca, que observa sua convidada, vendo tudo que dança por trás do vidro espelhado.

E quando seus braços me envolveram, eu senti o calor do seu corpo, e já sabendo o que você queria (não por ser isto que tantos homens querem, mas por sentir isto, envolvida no calor do seu abraço), pensei em que resposta daria quando as palavras viessem. E quando vieram, eu respondi “Se for só dormir, pode”.

Vultos. Memórias. Tudo o que já fizemos e fomos nos trouxe até aqui. E quão belo não seria só rever os pedaços certos!

sábado, 28 de março de 2009

Roda das estações *coisas a 4 mãos - III*

Por: Tyr e Troll

 

Não era fácil aquele momento, quando conversávamos sobre o que escolher ou não. Antes parecia fácil, ou talvez enxergássemos pela mesma faceta, mas água e vinho não se tornam um mesmo líqüido, pois um é rubro e outro translúcido, mas do que estávamos falando realmente?

Água e vinho... era estranho pensar naquela mistura rósea um tanto amorfa, quando as duas coisas meio que se perdiam em algo que provavelmente não teria gosto algum. E de novo não chegamos ao que estávamos falando. Assuntos que acho que se perderam com o tempo, talvez. Era uma escolha, possivelmente importante. No fundo, você não escolhe o que ter ou viver, mas sim o outro mundo de coisas que deixa pra trás. Vivemos de opções não marcadas.

Talvez fosse isso que realmente incomodava de vez em quando. Saber que para trás havia ficado algumas coisas que se julgava tão importante e que agora mais parecia um saudosismo de rever um albúm antigo. Várias vidas novas surgiam a cada novo passo à medida que o passado era deixado para trás, ganhando novas nuances que deixariam muitos, confusos ao ver aquele albúm, ou a garrafa de Vinho e água postos sobre a mesa. Mantidos separados por serem elementos diferentes, mas com traços tão marcantes quanto os assuntos que não voltavam ao ponto da conversa iniciada.

O passado descortinava-se ali, naquele entremeio de uma tensão palpável, e pensar nas fotos não ajudaria em nada. Mesmo assim, por vezes é preciso folheá-las. Sentir-se idiota ou saudoso por cada máscara que já tenha usado, na frente de lentes momentâneas, mecânicas ou não. Cada trecho emprestando uma lantejoula, uma miçanga para o carnaval de cores e miséria que gostamos de contar que sempre foi a vida. Esconder a simplicidade atrás de tantos poréns e porquês. Esconder a alegria atrás da garrafa de vinho, já pela metade. Tirar a dor da cabeça e jogar na água.

Mas dores de cabeça só são descartadas quando eliminadas com um simples remédio, ou quando abandonamos aquilo que tanto incomoda os pensamentos, e o simples abandonar lembraria o arrancar do coração e dos sentimentos. Seria deixar para trás as lembranças que nos fizeram sorrir, ou as risadas e abraços que deixaram suas marcas. As máscaras se encontravam sobre a mesa de antigos carnavais, onde as cores perguntavam o lugar que deveriam se encontrar. Um sorriso fraco; um suspiro e a máscara é colocada mais uma vez. Ali não havia sorrisos, nem tampouco lágrimas. O que ele ali encontraria era o semblante frio da promessa de vindouras épocas de uma nova entre-safra.

E se já é o outono da vida... quando se chega a ele e as folhas caem. Quando nos campos da memória a colheita está pronta e farta, mas nos jardins da mesma não há as cores primaveris. Sem entre-safras, sem mais dúvidas, mas também sem a esperança do virar da roda. Não. Mentira. A roda sempre girará, na entropia de Ouroboros que no ato de devorar-se sufoca Yggdrasil. Só o homem conseguiu ser estúpido o suficiente para realmente devorar o próprio rabo e achar que se reformaria, disso. As colheitas já correram círculos pelos campos, sem devassar a terra. A máscara sorri de volta, com aqueles olhos de abismo. O semblante que ela já escondera, frio como granito. Está ali, de volta, fora da roda das estações. Finalmente toma a taça do vinho em mãos. Deixa o rubro forte tomar-lhe os lábios e toma a máscara mais colorida e bela, como um estandarte contra o resto. Com toda a tolice do pícaro que veste sonhos.

- O mundo não pára nem espera.

- Apenas aguarda para depois continuar seus passos.

Não haviam xeque-mates e tão pouco becos sem saída. Máscara mais bela e olhos de abismo, ali se despedem para novamente se encontrarem, para quem sabe um dia voltarem a filosofar.

 Celtic Autumn Leaves, de ~foxvox no deviantART.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Elixir de palavras *coisas a 4 mãos - II*

Publicado originalmente aqui.
Por: Mai e Troll

Os dias são assim, não há sol mas eu canto porque mesmo sob guarda-chuvas, há luz nesse dia. Se em instantes o mundo desaba e o céu cai no chão e sob nossos pés só percebemos abismos, logo ali reencontraremos a paz, no simples beijo, abraço, afago ou no deitar as palavras sobre a cama de papel...Somos assim, peças soltas em nossos próprios quebra-cabeças. Pingentes no mundo, facilmente transformamos um bem-querer em dose extra de uma espécie de elixir mágico em nossas vidas... Doses homeopáticas de um amor alternativo, secreto e recíproco, com o qual se espera poder contar, sempre... Essas são as tais pontes. São pontes, as fontes literárias em que palavras içam-nos, resgatando-nos de abismos, nossos ímpetos silêncios, quase morte em quase vida... E são momentos, fragmentos de tempo, pequenos gestos, singelos fractais e não fossem esses pequenos momentos, pequenas coisas que encontrássemos o significado de ir sendo, que faríamos, que seria do viver? ‘O grandioso é por si. Isso precede sua semiologia. Mas o que há para se extrair de belo e agradável é o pequeno, o cultivado, algo simples com a delicadeza de um beijo. Sim, somos peças soltas em quebras-cabeças nossos, como dos outros, também. Mas Somos maiores nos gestos mais singelos de cada dia do nosso existir. E desse elixir secreto e alternativo, vem o dia nublado ganhar brilho. Não há um sol, mas há luz e eu canto'...

sexta-feira, 20 de março de 2009

Física e química *coisas a 4 mãos - I*

Por: Poisongirl e Troll

Entregar-se ao momento, descobrir a própria alma nos gestos refletidos no outro. Um encontro inesperado, as propostas indecorosas da vida e o clímax de um acaso-não-ao-acaso. Quando as coincidências se confundem com a intenção futura e a vontade pregressa. Momentos fazendo química de substâncias nada elementares, quando palavras se tornam vapor exalado de misturas.

Tornar-se o próprio veneno, exposto à corrosão do que lhe vai por dentro, lastro ácido e atroz  que lhe atravessa os vasos e se oferece ao ar, cercando seu corpo como um pensamento, ou o desenhar de um gesto, ou um cheiro que não se reconhece  mas que a ninguém aturde como a si mesmo, nem que se quebrassem todos os pratos, todas as janelas e arrebentasse as portas antes de sair, como se fosse possível sair deste vagar pelo seu circo particular de horrores, nem mesmo assim desmancharia o espanto.

Ainda que conseguisse deixar o labirinto, não livrar-se-ia das escolhas, dos tantos caminhos que se descortinam. Nem derrubadas todas as paredes, libertar-se-ia de tudo, na inexorável queda do fruto de Newton. No pecado da gravidade, despencando até você. O entorpecer dos sentidos, mergulhar no abismo de suas sombras. Passado e presente quebrando os ossos como se desafiando mente e corpo a serem ainda sólidos. A peçonha por sob a pele, pulsando para anunciar o tempo.

E na seqüência tomaria mais um gole disso que é você e depois outro e mais um e ainda outro e outro antes do fim.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Tabuleiro *geme o homem da camisa de força*

Ele caminhava cada vez mais lentamente. A trilha era a mesma, não menos íngreme, mas também não mais, e no entanto a marcha ia diminuindo aos poucos. Parecia que seus olhos não conseguiam mais ver a estrada tão claramente e sentia-se perdendo peças pelo caminho. Por vezes abaixando-se para pegar algumas que via caírem. Desmontava, pq sentia-se fora de ordem.

- Homem, não pense que deixamos esse jogo parar, assim. – O cavalo olhava-o com um tom sério, do alto de um quadrado negro, à beira de seu trajeto. O tom tão claramente acusatório, vindo daquele ser esculpido em marfim. – Vamos! O tabuleiro está parado há tempo demais.

O caminhar não cessava, mas por um momento aqueles olhos deixavam-se contemplar o panorama por trás do mesmo brilho de sempre. Um ar vago ao rosto, como se nenhuma jogada pudesse ser realmente infalível, mas mesmo assim o olhar entregava que havia aquele planejamento em ordem. Algumas peças caídas do chão voltavam para seu corpo, como se pensar no jogo fosse aos poucos remontando o quebra-cabeças.

- Avante! – O cavalo sobressaltava-se como se tomado por uma ordem inaudível e saltava de seu quadrado, galopando ladeira abaixo até uma nova posição, onde voltava a ser marfim duro.

- Sacrifica-me em nome de algo, jogador? – Poucos passos acima, o bispo olhava-o com um ar de resignação. – Olho à volta e sem o cavalo, sei que serei o próximo a cair. Mas já tantas vezes era eu a ensinar sobre o sacrifício. Justiça poética lhe cai bem, como sempre. – Respirava fundo, vendo a imensa torre que se avolumava à sua posição e fazendo o sinal da cruz, uma última vez, antes de deixar de existir sob o peso da pedra .

Os gritos de mais uma entidade ecoavam pelo tabuleiro da vida, enquanto o jogador abaixava-se para alcançar as últimas peças que havia perdido. Não se incomodava em desmontar-se, de vez em quando, mas ultimamente sentia mais forte o vácuo por baixo do próprio quebra-cabeça. Não lhe agradaria o ébano da inexistência. Não agora. Encaixava de volta aquele pedaço, à palma da mão esquerda, e respirava fundo uma vez mais, depois de tanto tempo. Ainda estava longe do cume, mas pela primeira vez em dias, parava de caminhar por alguns instantes.

O olhar percorria a disposição de todo o tabuleiro, uma vez mais, antes de voltar-se para o espelho. Quem o desafiava, ali, era ele mesmo. Seu oponente mais difícil… e mais recorrente. Fechava os olhos por alguns instantes, a respiração se tornando mais uma vez controlada. Recomeçava sua caminhada e dava as costas para seu adversário.

Sorria, ao ver a rainha passar imponente, como se voar fosse a coisa mais simples do mundo. Seus lábios enfim moviam-se e a palavra ecoava imponente por aquele mundo de pretos e brancos.

- Xeque.

sábado, 14 de março de 2009

... não me toquem nessa dor. *no rádio*

Um estrondo. Surdo por alguns segundos, ele olhava em volta. O cheiro de ozônio, tão forte no local, preenchendo-lhe as narinas. Algo parecido com uma dor de cabeça atacando-o de súbito. Aquilo tinha sido um raio... só podia ser.

- Coincidência, só isso.

Mal ouvia a própria voz, mas não perderia a pôse. Forçava-se a não cambalear, apesar do forte impacto que acabara de sentir. A visão voltava aos poucos e só então se dava conta: não era o mesmo lugar. Não fazia idéia de onde estava. O estrondo não era mais coincidência, porque não podia ser.

- Quem é voce?

O rapaz à sua frente apenas abria um sorriso largo, branco, por baixo dos cabelos um tanto bagunçados e soltos. A franja um tanto mais comprida do que o normal lhe cobria os olhos, mas um brilho verde por sob ela denunciava-lhes a cor. A roupa era estranha... a manta dava um jeito esquisito, anacrônico, às calças jeans e ao tênis surrado. Não respondia nada... como se havia identificado, mesmo? Oner... não... Oneiromante.

- O q-quê diabos é você?

Aquele sorriso trazia caninos finos, não longos, mas pontudos. Incomuns. Não era nada saído de um conto vampiresco... lembrava-lhe mais algo... felino. A voz vinha, mesmo que os lábios não se movessem.

- Não, não... o diabo aqui é você.
- De que porra você tá falando? Pra onde você me trouxe?
- Eu não... ela. Ela não te quer mais por aqui.
- QUERO OUVIR ISSO DELA!
- Aqui... ela é quem ouve tudo. Você só escuta. Você é um câncer.

O Oneiromante erguia uma mão, tirando os cabelos do caminho. Os olhos pareciam mudar de cor, a cada segundo, e por um momento tudo parava, o próprio ar estagnava ali dentro. O rapaz se dava conta de para onde havia sido trazido: ali era a casa dele. Mas diferente, de alguma forma.

- Não... não vou embora. - A voz mudava, aos poucos. Palavras tornando-se algo mais parecido com ruídos. Ele grunhia, à luz dos olhos daquele que viera confrontá-lo. – Quem você pensa que é? – Aquilo vinha em um berro quase ensurdecedor.

- Quem você pensa que é?

Ouvir aquela pergunta de volta o irritava além do suportável e ele sentia-se mudando, de alguma forma. Era estranho, mas era ao mesmo tempo natural. Crescia, em desafio àquele homem que queria arrancá-lo dali. Estava em um sonho, mas não era um sonho seu. Era um sonho dela. E ali, ele se sentia muito mais confortável do que em qualquer outro lugar. Haviam sido anos habitando aquela mente. Não se deixaria derrotar, por um idiota pretensioso.

De súbito, decidira pelo embate. Saltava por sobre o oneiromante, querendo derrubá-lo, para descobrir-se, menos de um segundo depois, em um novo lugar. Parecia que estava sobre algum tipo de pedestal, e ao fundo podia ouvir a voz daquele que tanto o atormentara… e a voz dela.

- É como um vício… buscar o que te faz mal.
- Haverá sempre alguém…
- … que seja.

Tudo desmoronava rápido demais. Ele não entendia mais nada, mas sentia uma sensação de impotência imensa… que sequer sabia se era sua.

O acordar não foi como o de qualquer manhã.


Bleeding Love, de *xequemate, no deviantART.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Ópios, édens, analgésicos... *no rádio*

É manhã e o dia me recebe de céu aberto.
Não braços nem toques, só o calor do sol.
A persiana falha em manter fora o dia claro.
E assim, chiando e grunhindo, eu acordo.

Tudo começa, lá fora o mundo vai e corre.
O banho vem súbito, grita pra mim: acorde!
A água me agride o torpor, tão confortável.
O tempo segue em seu inexorável "foda-se".

A pessoa no espelho me culpa nas olheiras.
Respiro fundo, aturo minhas perspectivas.
Sobreviver ao dia, pra viver melhor depois.
Um dia paro, deixo a estrada pras veredas.

Sonhei coisas simples e pueris, essa noite.

 

domingo, 8 de março de 2009

Incidências *à fogueira das paixões*

Os cabelos claros, um tanto compridos, teimavam a favor do vento pela janela do ônibus, num ritmo quase tão frenético quanto o da música aos fones de ouvido. A mochila sobre o colo pesada de todos aqueles livros de faculdade, o pesado caderno e as quinquilharias quasiessenciais da vida moderna: carregador de celular, palmtop, um joguinho portátil para as eventuais filas chatas. O que ele não sabia, mas que mais tarde iria irritá-lo profundamente, é que nada daquele peso todo tinha a forma ou função de uma caneta. Mas ali, ainda não importava.

Ela subira apenas quatro pontos depois dele, mas outros dois se passariam antes que alguma pancada do ônibus - típica de IPVAs mal gastos - o fizesse passar os olhos pelas outras pessoas na condução. E ali, quase sete paradas depois, vislumbrou pela primeira vez aqueles belos cachinhos quase ruivos, profusos, desafiando a gravidade e balançando não com o vento, mas com os movimentos do próprio ônibus. Contou as cadeiras para saber q estava a apenas três passos de saciar sua imensa e súbita curiosidade.

Não se pôs a imaginar demais, mas tentou adivinhar melhor que cor seria aquela. Quando viravam para a direita, eles dois e todos os presentes, a luz do sol fazia-a parecer loira. Para a esquerda, ficava mais pra ruiva. Era como olhar para aqueles brindes de pacote de salgadinhos, imagens mudando de cor. Mas ele jamais havia fantasiado com brindes e eles certamente não teriam aqueles cachinhos para se agarrar e deslizar os dedos.

Quando desistiu da disputa entre as tonalidades, começou a desenhar outros aspectos, descobrir feições. Sardas? Certamente teria, mas não muitas. Apenas salpicada de pontos interessantes para beijar - sob a desculpa de contá-los - pelo rosto, ombros, braços, seios. Não era muito alta, a calça de algum uniforme, um laranja discreto com um verde-musgo, e as sandálias de saltos curtos. O que via de seus braços era uma pele bem branca, delicada. Fácil de arrepiar, talvez.

Pela silhueta, era magra mas sem exageros, uma medida agradável. Quando se ajeitava ao banco para começar a ler algo, ele percebia - imaginava, mais do que via - o decote de algum volume, firme. Mas mesmo na diagonal em que a via, nada transparecia do rosto. Os cachos faziam bem seu trabalho de esconder o suficiente para atiçar-lhe a imaginação fértil. E ali, a cabeça bolava mil e uma maneiras de se aproximar ainda dentro do ônibus, todas um tanto cretinas e algumas delas bem ridículas.

O coração perdeu uma batida para o vento, quando um ponto antes do seu ela levantou-se e puxou a corda. Ele precisaria imaginar um tanto mais e com mais afinco, para dar a ela aquele rosto. Sua mente não lhe fizera qualquer justiça e por isso ele se sentiu um pouco culpado. De frente a luz definitivamente a deixava loira. Não se havia demorado a pensar nos olhos e enquanto ela passava, ele se agradecia por isso. Não conseguiria bolar aquela cor de mel tão clara e reluzente.

Passava. Não havia mais desculpas que o apoiassem na vontade de continuar olhando. Mas ao olhar pela janela, sorriu largo e quase tolo. Ali, a um ponto de suas aulas, uma lanchonete estampava as mesmas cores do uniforme.

E assim, e pelo resto daquela manhã, ela mal imaginava que tantos pontos de ônibus, alguns lanches demorados,  "coincidências", flores e um bocado de ladainha depois, alguém se deitaria beijando-a... com o pretexto de contar-lhe as sardas.


adult little red riding hood, de *janaschi no deviantART.

segunda-feira, 2 de março de 2009

... and learn to fly.

"A verdade é que eu nunca me conheci, realmente. Porque a pessoa que já teve tanta certeza de tudo não é a mesma que hoje segue pela vida ao seu lado, que ama dessa forma tão incondicional e se entrega sem perguntas. Sem ficar se deixando frear por tolos receios ou pelos grilhões do tempo. Quando a mente nubla e tudo fica relativo a parâmetros que eu nem sabia q estavam lá. Só sei, isso sim, que te amar é novo como todo amor tem que ser. Mas que quem te ama não sou eu, como me conheci por anos. Esse sentimento é desse 'eu' de hoje, de amanhã e de sempre."

A carta estava um tanto borrada da tinta e a mancha ao canto do papel era o sangue dele, ela tinha certeza. Não lhe contara nada sobre aquela guerra, sobre as novas batalhas, mas nem precisava. A sacerdotisa fechava os dedos, amassando um pouco o papel, e suspirava, levantando-se e caminhando lentamente em direção à varanda. O vento soprava e os finos fios vermelhos balançavam ao seu sabor. Ela respirava fundo, observando o céu. Sabendo o que tinha de fazer.

Longe dali, um estandarte ainda flamulava contra o mesmo soprar, tão manchado de terra, sangue e lágrimas. Ele erguia-se uma vez mais em riste, corpo rígido como a lâmina na outra mão, os nós dos dedos já brancos de segurarem a empunhadura e a haste daquela bandeira. Ao seu redor, o som de tanto metal ainda tilintando. A batalha prosseguira assim já por horas e os estrondos dos tambores já haviam sido silenciados pelas flechas. O guerreiro precisava manter o brasão de pé. Mostrar a seus inimigos que ele e os seus não desistiriam jamais.

O vento aumentava, com jeito de presságio, e apenas seus dedos moviam-se, enquanto a respiração deixava-se alterar aos poucos. Ela sentia o ar com aquele jeito elétrico, confirmando sua missão. O cheiro da terra preenchia-lhe as narinas antes mesmo que a primeira gota caísse. Em menos de dois minutos, o outono desabava gotas pesadas até onde sua vista alcançava. Os céus escorriam pela terra, criando sulcos e encontrando caminhos. Por alguns instantes, parava de respirar. Concentrava-se em lavar o mundo.

Cada novo grito era como se a batalha começasse toda novamente e terminasse no instante seguinte. Ele podia sentir o sangue fluir pela lâmina como se pela própria pele, antes dele realmente fazê-lo. A arma uma extensão de seu corpo indo buscar a vida de cada opositor, dentro de seus corpos. Mal sentia qualquer dor, agora. Apenas se entregava àquela batalha e aos próprios urros e grunhidos. A bandeira começava a molhar-se de mais do que sangue.

Antes do fim daquelas duas batalhas, vinham já as torrentes lavar o mundo do sangue derramado.