Os cabelos claros, um tanto compridos, teimavam a favor do vento pela janela do ônibus, num ritmo quase tão frenético quanto o da música aos fones de ouvido. A mochila sobre o colo pesada de todos aqueles livros de faculdade, o pesado caderno e as quinquilharias quasiessenciais da vida moderna: carregador de celular, palmtop, um joguinho portátil para as eventuais filas chatas. O que ele não sabia, mas que mais tarde iria irritá-lo profundamente, é que nada daquele peso todo tinha a forma ou função de uma caneta. Mas ali, ainda não importava.
Ela subira apenas quatro pontos depois dele, mas outros dois se passariam antes que alguma pancada do ônibus - típica de IPVAs mal gastos - o fizesse passar os olhos pelas outras pessoas na condução. E ali, quase sete paradas depois, vislumbrou pela primeira vez aqueles belos cachinhos quase ruivos, profusos, desafiando a gravidade e balançando não com o vento, mas com os movimentos do próprio ônibus. Contou as cadeiras para saber q estava a apenas três passos de saciar sua imensa e súbita curiosidade.
Não se pôs a imaginar demais, mas tentou adivinhar melhor que cor seria aquela. Quando viravam para a direita, eles dois e todos os presentes, a luz do sol fazia-a parecer loira. Para a esquerda, ficava mais pra ruiva. Era como olhar para aqueles brindes de pacote de salgadinhos, imagens mudando de cor. Mas ele jamais havia fantasiado com brindes e eles certamente não teriam aqueles cachinhos para se agarrar e deslizar os dedos.
Quando desistiu da disputa entre as tonalidades, começou a desenhar outros aspectos, descobrir feições. Sardas? Certamente teria, mas não muitas. Apenas salpicada de pontos interessantes para beijar - sob a desculpa de contá-los - pelo rosto, ombros, braços, seios. Não era muito alta, a calça de algum uniforme, um laranja discreto com um verde-musgo, e as sandálias de saltos curtos. O que via de seus braços era uma pele bem branca, delicada. Fácil de arrepiar, talvez.
Pela silhueta, era magra mas sem exageros, uma medida agradável. Quando se ajeitava ao banco para começar a ler algo, ele percebia - imaginava, mais do que via - o decote de algum volume, firme. Mas mesmo na diagonal em que a via, nada transparecia do rosto. Os cachos faziam bem seu trabalho de esconder o suficiente para atiçar-lhe a imaginação fértil. E ali, a cabeça bolava mil e uma maneiras de se aproximar ainda dentro do ônibus, todas um tanto cretinas e algumas delas bem ridículas.
O coração perdeu uma batida para o vento, quando um ponto antes do seu ela levantou-se e puxou a corda. Ele precisaria imaginar um tanto mais e com mais afinco, para dar a ela aquele rosto. Sua mente não lhe fizera qualquer justiça e por isso ele se sentiu um pouco culpado. De frente a luz definitivamente a deixava loira. Não se havia demorado a pensar nos olhos e enquanto ela passava, ele se agradecia por isso. Não conseguiria bolar aquela cor de mel tão clara e reluzente.
Passava. Não havia mais desculpas que o apoiassem na vontade de continuar olhando. Mas ao olhar pela janela, sorriu largo e quase tolo. Ali, a um ponto de suas aulas, uma lanchonete estampava as mesmas cores do uniforme.
E assim, e pelo resto daquela manhã, ela mal imaginava que tantos pontos de ônibus, alguns lanches demorados, "coincidências", flores e um bocado de ladainha depois, alguém se deitaria beijando-a... com o pretexto de contar-lhe as sardas.
10 comentários:
Perfeito e delicioso. A imaginação é uma das melhores formas de atiçar a mente, corpo e tantas coisas mais. Planos e quem sabe outras coisas mais. Senti-me em teu lugar, e relembrei-me de momentos que vivi muito mais nova. Ah! Quando foi que deixei este tipo de magia morrer em mim, meu caríssimo guerreiro?
...Imaginação...Criatividade... Genialidade...
Sempre enconrei e continuo encontrando quando venho aqui.
Ei, Troll, obrigada pela palavras.
Grandes homens sabem o que significa Ser Mulher e porque são grandes, dizem que não sabem...
Abraços,
saudades,
Mai
Hey! Você também é glutão? Rs!
Seus textos simplesmente acontecem! Você escreve desde a infância?
Bom domingo - se é que domingos podem ser bons!
TYR:
Quando foi que todos fomos ensinados a crescer para além das coisas simples e dos momentos singelos, caríssima? Quando nos tornamos chatos e previsíveis?
MAI:
Estou mais para homem grande do q para grande homem, Mai. Mas obrigado pelos elogios e saiba q as palavras que lhe dirigi são bem mais que merecidas. Beijos e saudade.
GLUTONE:
Glutão, eeeeeeuuu? Sim, muito. Mais da metade do meu repertório na cozinha é de doces e calorias mil. Mas adorei a receita no seu blog, tão simples e com jeito de tão deliciosa.
Sim, meio q escrevo desde a infância, sempre gostei disso. Abraços e volte sempre, adoro seus comments.
Quando nos tornamos piratas e adultos chatos preocupados apenas com agradar os gostos dos demais.
Ou...
Quando a esperança de um "garoto perdido" se esconde depois da segunda estrela à direita e não retorna ao peito da barda que já vira mundos encantados ao dobrar de uma esquina.
Apenas nesses dois casos, creio que penso ter perdido esse tipo de magia...
Nino,
Deliciosa a introdução para uma história de amor, ou sedução... :)
Boa semana, meu querido!
delicioso ler sua imaginação flutuando assim...
bj
TYR:
Esse tipo de magia pode sempre ser reacendido, quando novamente nos deixamos ser tomados por desejos e fantasias. Quando novamente os sonhos se tornam parte de nossa vida.
MAMYS:
Obrigado, mama, adoro quando se delicia por minhas linhas.
IARA:
E essa imaginação tende a sempre ir tãããão longe... *rs*
Legal ver,como os detalhes do cotidiano crescem e se tornam inteiramente interessantes quando escritos de maneira tão criativa e instigante.
Uma ótima semana!
Beijos e flores!
NANDA:
Os detalhes, cada dia e cada momento. A vida se faz mais interessante nos olhos do observador. Boa semana, caríssima, sempre.
Postar um comentário