Já fui criança. Corria o mundo como se nada pudesse me alcançar e saltava alturas como se os braços abertos me ajudassem a voar. Foi assim que conheci o ardido do mertiolate e o vermelho do mercúrio cromo. Foi assim que conheci a prisão do gesso, em suas diversas formas, mas também descobri que meu corpo podia se cuidar, com a ajuda certa. E assim, já tive a impressão de que era invencível.
Já fui adolescente. Enfrentava o mundo como se nada pudesse me satisfazer e percorria as sombras como quem cumpre alguma grande missão. Fui o protagonista de mil dramas e centenas de aventuras, desejando um dia que fosse eu naqueles holofotes do cinema. Ia perdendo as certezas e ganhando cada pedaço de chão, onde deixar cair os cacos de uma dúzia de corações partidos. Com papel e caneta, montava mosaicos deles e achava tamanha estupidez linda e sublime. E assim, já tive a certeza de ser mártir.
Já fui perdido. Me desfiz de pedaços errados e encaixei o que dava no lugar. Me esfacelei, reconstruí, melhorei e aprendi. Já odiei espelhos e ganhei sei lá quantos sete anos de azar. De vez em quando, escorregava pela vida só pra maré levar. Nadei pra morrer em muita praia, mas sempre em alguma nova ilha. Quem estava lá, não sei. Em algumas se tinha quem, não encontrei. E ali, tive a angústia de estar só.
Já fui número. Maior quê, menor quê, igual, diferente. Derivei de mim mesmo em equações de incontáveis graus. Fui meu próprio majorante para porcentagens absurdas de sei lá quantos exercícios. Não encontrei botões o suficiente em calculadora alguma, pra ajudar a me calcular, então fiquei com uma de camelô, que apertando soava “pi”, só porque era menorzinha e cabia no bolso. E então, tive a audácia de ser ímpar.
Entre todos os meus heróis, tenho certeza que fui muito melhor como um vilão. Aprendi com meus vôos a queda, com meus delírios, algo perto da sanidade. Nunca descobri, no entanto, o que é ser grande nem se isso me traria qualquer significado. De tantos tombos, levantei-me alguns centímetros mais alto e só. Quando parei pra perguntar, me falaram que crescer era caber numa caixa menor do q eu era. Perder pedaços, pra poder entrar ali e ficar daquela mesma altura. E assim, já tive medo de ser eu.
E se algum dia tive tempo, só sei que hoje tenho pressa. Correndo pra tentar saltar e ser eu, de novo.
Faery Chrysalis, de =Alterren no deviantART.
9 comentários:
Eu já disse, mas vou repetir: lindo, lindo, lindo!
Se bem que acho voce lindo, mesmo.. :))
beijos, nino
Assim somos tantos...
Na maioria nem me reconheço!
Belo texto amigo!
=)
Creio que já comentei para ti o que achei deste teu texto, meu caro Andarilho. E espero que as palavras tenham sido pirografadas nas linhas do tempo onde apenas tuas lembranças trarão a vivacidade do fogo das linhas que já escrevi um dia, quando um dia li e vi diante de meus olhos as linhas que aqui estão descritas.
Abraços
O tempo segue sua rota e nós, rotos, corremos apressados na pressa de ir... Mais adiante, tentaremos desacelerar a corrosão, desgaste, degeneração, morbidez...
Tempo - nada natural...
Linhas que teoricamente estão demarcadas mas, no caos de nossos dias, nada vemos.
Hoje ainda temos histórias da infância e adolescencia... Os digitais e cyber humanos não sabemos se terão...
Assim caminha a humanidade...
Humanidade?
'Relógios dominantes'
Humanos escravos.
Beijos, querido.
com todo o calor que a frieza dos número tenta esconder...
sopros
p.s. a música é linda.
Quando se cresce, é preciso fazer o quê deve ser feito e não o quê se realmente quer fazer. Daí a gente deixa de ser o quê era. Daí vamos deixando um pedacinho, uma lembrança, aqui e outra ali. E sempre queremos voltar ao tempo.
Cuidado ao aparar as arestas pra caber na caixa, não queira perder um pedaço que te faça sentir saudade... ;)
Abraço.
Tenho pensado tanto na infância e no restante do caminho que me fez eu. Já pensei em postar sobre, mas tenho medo de decidir, irrevogavelmente, que não estou em meu melhor de mim.
Você sim, meu caro! Está em plena forma literal, como sempre!
MAMA:
A beleza do texto não está em mim, mas na jornada e si, mama. *rs*
CACKAU:
E o quão difícil por vezes é entender quem está no espelho, não é mesmo?
TYR:
O tempo pode tentar apagar muita coisa, mas o q importa, sempre fica.
MAI:
Escravos do tempo, dos modismos, de termos e olhares. Escravos somos todos, de nossa semiologia. Da comunicação.
WOLF:
Caríssima, o frio do mundo em nada se compara à brisa gélida dos números que nos tentam definir. E a música é sempre escolhida a dedo, para os deliciosos ouvidos de vcs q aqui vêm.
FABIO:
Já perdi pedaços assim, já achei outros parecidos, mas nunca iguais. Acontece, acho...
GLUTONE:
Caríssima. Não há pq temer quem se é ou se foi. Mas certamente tenho medo de quem posso vir a ser. *rs*
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