Era fogo. Tinha certeza disso, porque ardia a pele como tal e ameaçava abrir-lhe a carne em bolhas. O cheiro também não era nada agradável. As mãos tentavam sentir a pele da coxa e vinha a súbita vontade de gritar. Não aliviaria em nada, a dor, mas era como se quisesse externá-la, de alguma forma.
Abrir os olhos foi um erro. Toda a desorientação e o mundo girando. As chamas ofuscavam-na e o fato de que tudo ao seu redor parecia prestes a derreter traziam à mente uma clássica visão do inferno. Tentar se mover foi outro erro. O grito finalmente escapava e, com ele, lágrimas. Tamanho desespero… sequer conseguia lembrar-se de como chegara ali.
Alguns olhavam, incrédulos, a extensão do acidente. Motoristas que paravam à beira da estrada, quase como mariposas aproximando-se do fogo. Os dois caminhões se haviam mesclado em uma massa distorcida, vazando areia e combustível inflamado. Era impossível ver o carro, prensado entre eles.
Ele caminhava, em meio aos carros e às pessoas. Em meio à certeza de que nada sobreviveria àquilo. Seus olhos admirando as chamas e como quebravam o silêncio da noite. E ignorava todas as mãos erguendo-se em sua direção, ao caminhar para o meio de tudo aquilo. Por um momento, alguém quisera correr para impedi-lo, mas o calor era intenso demais.
Em meio aos destroços, ela deixara-se perder em prantos e desespero. Sufocava tentando respirar, tão quente que queimava-lhe a garganta. Estava presa. A dor já querendo dar lugar ao desmaio. O cheiro era insuportável. Seus olhos arregalavam-se, quando divisavam a silhueta do homem. Caminhava pelo inferno como se nada sentisse. Um joelho apoiando-se ao chão, quando se abaixava para tocar-lhe o rosto.
- Você veio me salvar? – A esperança na voz já diminuta era tão fraca quanto o sorriso aos lábios já negros. As lágrimas corriam pouco, antes de evaporar-se.
- Não posso. – Por trás do homem, um par de asas, imponentes e alvas, descortinando-se como se pudessem afastar o fogo.
- Isso aqui é o inferno? – Havia uma estranha aceitação, naquela pergunta.
- Será bem mais frio do que isso, lá.
- Então não me prolongues a vida… – Fechava os olhos, sentindo as mãos daquele homem tomarem-lhe o rosto. As lágrimas. Sem a dor, ficaria apenas o desespero. Mas, de alguma forma, preferia não estar sozinha.
Imagem de Luis Royo.
4 comentários:
Eis que surge finalmente depois de tanto tempo um texto que me prende a atenção. Dizem que estou muito ligada à morte pelo tanto que escrevo sobre ela, mas o que há demais cativante justamente no que a precede? Seu texto conseguiu trazer novamente as cenas aos meus olhos, a dor e o sofrimento, Um cenário tão velho e conhecido que apenas erguem os olhos observadores de uma velha guardiã. Parabéns Troll, finalmente você conseguiu me fazer comentar em seus textos novamente, quebrando o silêncio ou a falta de palavras que eu vinha tendo.
Nuu bem envolvente esse texto... confesso que fiquei preso nele do começo ao fim... gostei do desenrolar das palavras postas aqui...
Envolvente, queria o desfecho logo. Um jeito muito lindo de descrever a morte, a passagem.
BeijooO
TYR:
Então seja bem-vinda de volta, Tyr. A morte é um tema e tanto, mas a aceitação da vida também. Os raros momentos em que nos permitimos olhar para trás e entender o caminho q trilhamos.
JC:
É um grande praze tê-lo e ter a sua atenção, por aqui, meu caro. Espero que volte mais vezes.
BIA:
Fico lisongeado, Bia, em tomar seus sentidos, por aqui.
VALÉRIA:
Faz parte de todos nós, não é mesmo? E é daquelas coisas que participa das nossas vidas o tempo todo, de certa forma. O q não é necessariamente ruim. "Cada segundo fere. Só o último mata." É só mais um desfecho.
Postar um comentário