Parava à frente de uma vitrine de loja e olhava-se pelo reflexo... não sabia o que fazia ali, mas pouco importava, realmente. Ela apenas se olhava, curiosamente, perguntando-se o quanto tinha mudado nesses sete anos fora. Gostava da roupa nova. Um tailleur branco, elegante, de corte que lhe caía bem aos ombros e à cintura. Tinha lá suas dúvidas quanto ao salto... achava que poderia ser mais fino, talvez, mas a altura estava bem certa. Caminhava pela Avenida Atlântica, mas não ao calçadão. Estava do outro lado da rua, onde aparecera após tanto tempo. Mas de lá encontrava um rapaz caminhando, ele sim, pela orla. Olhava-o. Estava acompanhado por alguém que falava descontraidamente... mas os olhos dele demonstravam que a descontração não era mútua. Trazia o olhar vago de quem tem algo entalado na garganta.
- Angelique?
Ela reconhecia aquela voz e voltava-se para o menino, Espírito, que surgira ao seu lado. Aqueles olhos sempre fixos, sempre grandes e abertos demais. O cabelo negro, bem curto, arrepiado... a pele pálida como a lua que despontava no céu escuro. As roupas em nada haviam mudado, e por um momento ela sentiu pena dele, por isso. A mesma camiseta branca, um tanto puída, a calça jeans escura e os tênis de corrida, já muito batidos. Olhava-se novamente à vitrine, de soslaio, e pensava no quão bem o seu novo tailleur parecia continuar em direção às asas, essas mais brancas que o tecido. Olhava novamente para o menino de lábios apertados e apenas sorria, deixando a mão esquerda ir tocar-lhe a única asa, negra, ao ombro esquerdo, como se querendo lembrar-se melhor dele.
- Ele te chamou de volta, também? Que bom... eu estava me perguntando se me sentiria solitária, sendo a única guardiã, por aqui. Mas imaginava que se ele havia pensado em mim, você não poderia estar longe.
Ela ria baixinho, enquanto começava a caminhar na direção do asfalto, prestes a atravessar a avenida, na direção de seu Criador. Mas Espírito segurou-lhe o pulso e ela sentiu aquele toque quente que ele sempre trazia, apesar da aparência fria. Parava, acompanhando o dedo da outra mão, que apontava para o outro lado.
- Ah... eles pararam... e pelo jeito nos olhos dela, já começou, não?
O menino fazia um menear afirmativo com a cabeça e agora olhava nos olhos de Angelique, que tinha entendido que não poderiam se aproximar. Por mais que tivessem sido chamados até ali – e os dois já sabiam o que ocorreria, o Criador não esperava que eles fossem em seu encalço. Especialmente quando ele estivesse falando com a menina. A guardiã olhava na direção dos dois, agora, e falava baixo com seu companheiro, em um tom bem menos descontraído.
- Tão sério... ele mudou um bocado, desde a última vez, não? Parece que endureceu... me pergunto o que o fez nos manter longe, todo esse tempo. E por que nos chamar justo agora. Porque ele teria relembrado de nós...
- Não tem a ver com ela... – o guia espiritual respondia, em sua voz quase nunca agradável – Ele estar aqui tem, mas nós não... ele quer que façamos algo por outra pessoa... alguém que não está aqui. Alguém longe... mas que o Criador quer que saiba o que está acontecendo aqui.
- Entendo... mas você vê os olhos dele, daqui? Parece tão frio... o q será que o afastou de nós? Fazem, o quê, sete anos? Ele com certeza mudou um bocado.
Espírito apenas respondia que sim, com a cabeça, olhando-a de lado e novamente para o outro lado da avenida. Estavam aqueles dois sentados em um banco de concreto, de costas para a areia da praia de Copacabana... a brisa da noite soprando por eles, enquanto o Criador apenas respondia algumas perguntas, olhando para as pedras portuguesas do calçadão, e a menina à sua frente não tirava os olhos dele, parecendo algumas horas esbravejar, outras abraçando o próprio corpo, o tempo todo olhando-o com um tom que misturava raiva e decepção.
Angelique levava a mão ao peito, enquanto a asa de Espírito parecia diminuir, ao fechar-se um pouco mais, atrás dele... os dois sabiam que ele não queria aquilo. O Criador sofria suas escolhas de uma forma que nenhum dos dois se via capaz de apaziguar. Os cabelos da guardiã, castanhos, longos e cacheados, caíam sobre a fronte enquanto se apoiava a um poste, preocupada... o menino apenas tocava-lhe a cintura e falava, áspero.
- Ele não sofre a dor dela... somente sua própria decepção. Ele vê quem tentou ser, esse tempo, e se arrepende de não ter feito isso antes... mas escute bem, guardiã. E ouvirá que a mente murmura um outro nome. Não nos quer perto, agora, porque prefere buscar forças em uma voz que lhe ecoa à mente. Em uma lembrança que eu e você ainda desconhecemos. Mas agora vamos... ele se levanta.
Ele tinha razão, claro... a mente que ambos podiam escutar murmurava um outro nome e se perdia em lembranças de algo novo... algo que Angelique enfim reconhecia como um sentimento do Criador que há muito pensara nela, pela primeira vez. Sorria, ao ver que nem tanto mudara, assim.
- Ele nos esqueceu todo esse tempo porque o coração não batia... e, assim, deixou de acreditar... – olhava para a menina sentada sobre o banco, que apenas o via se afastar, lentamente, em direção à avenida e aos dois guardiões – Ela não chora... que expressão é essa, que parece tão séria face a tudo isso?
- Ele jamais a viu chorar... e isso é uma das coisas q o estavam matando, por dentro.
- Bem... eu já tenho o nome de quem ele quer que eu guarde... está chamando por ele até mais forte, agora. Melhor eu pegar carona nisso. – Angelique ria, lembrando do quão bom sempre fôra voar nos pensamentos do Criador – Você cuida dele... e diga que eu decidi não perder tempo. – abria as asas, envolvida na empolgação de existir, uma vez mais – Ah, agradeça pela roupa... e veja se pede algo melhor pra vc, Espírito. – ria, sumindo em meio ao céu noturno, rumando na direção que iam aqueles pensamentos...
O menino apenas respirou fundo, pensando em tudo o que “lembrava” agora... voltando a existir, voltava a saber tudo que se passava na mente do criador... mas precisaria de tempo, antes de se tornar novamente um guia. Havia muito a entender, de sete anos que se passaram. Mas do pouco que já compreendia, ganhava a certeza de que precisava estar ali, realmente. O Criador descobrira-se uma vez mais preso e fascinado pelas volúveis ondas do perpétuo Destino.
- Boa noite, guia........ ela já se foi? – o Criador aproximava-se, observando as estrelas – Espero q esteja forte como sempre... tem duas almas a guardar, dessa vez. – suspirava – Vamos... eu preciso caminhar um bom tempo, antes de encontrar qualquer pessoa que tenha algo a dizer sobre essa noite... vamos pra casa a pé...
Espírito suspirou, querendo poder dizer que não entendia bem os humanos... mas não era o caso... o problema sempre foi entender bem demais.
terça-feira, 16 de outubro de 2007
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2 comentários:
Foi tão agradável ler este conto. O cenário todo se desenrolou diante de meus olhos de uma forma fascinante. Pude olhar dentro dos olhos de Espírito, pude rodear Angelique. Sentir o que eles sentiram, compreender o que eles pensavam. Por um breve momento estive ao lado deles, apenas como o reflexo à vitrine da loja, espreitando tudo que ocorria. Como sempre seu conto é maravilhoso e nos transporta para o mundo que vive nas linhas a cada respirar que as desenha em tua caverna.
Esse dom que tem de fazer com que simplesmente nos transportemos para o cenário da história é fascinante. É como se passassemos o limiar de leitor para expectador. Um encontro surpreendente, Guardião. Que nos faz querer mais e mais e mais e mais..
Sou suspeito pow
Virei fã de carteirinha. rs
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