A madrugada seguia por mim, enquanto a chuva caía torrencial e van alguma queria levar-me para a Central do Brasil. Deveria ter me preparado melhor, mas havia bem pouco que poderia fazer agora. E pelo jeito q todos os motoristas chegavam anunciando que não pretendiam voltar, o caminho de volta ao Rio deveria estar bem ruim, com tanta água. Sobre a plataforma, já éramos o suficiente para lotar duas viagens e mesmo assim nenhuma van de volta. Até, claro, a mais ferrada de todas surgir do nada, desembarcando uma lotação naquela rodoviária de interior e anunciando que voltaria.
Seguiria até o destino final, então sentei-me ao fundo, em um canto. Ao meu lado, um pastor evangélico negro trazia sua bíblia e me cumprimentava, antes de pegar o celular para avisar a alguém q finalmente havia conseguido condução de volta à capital. Em meio à conversa, um dado curioso: "Fui comprar os sapatos e vieram me chamando de pastor, daquele jeito, sabe? Quase perguntei se me preferiam de volta nas drogas e no crime." Ao nosso lado, sentou-se um senhor fedendo a álcool que não sabia indicar onde precisava saltar. Todos demorando a se acomodar, bem mais gente do que deveria caber, ali. Mas fomos.
Em meio à jornada, o pastor lia Pedro: Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo; Se é que já provastes que o Senhor é benigno. A página terminava aí, junto com meu interesse, e fui dar conta de passar meu próprio tempo longe das palavras dos primogênitos e da igreja do Filho. Livrinho de Sudoku em mãos, estava entretido.
Central do Brasil. A van mais lerda da história me deixara lá depois de 00h40 e encontrei o ponto do 184 vazio. O pastor havia seguido qualquer outro caminho. Quando cheguei à plataforma do meu ônibus, já havia um outro rapaz, 30 e poucos anos, talvez, e ficamos aguardando. 3 carros vieram e os 3 avisaram q já dirigiam-se à garagem. 01h25 o homem pergunta-me:
- Quer rachar um táxi até o ponto final, em Laranjeiras?
- Como sabe que vou pro ponto final?
- E porquê não saberia? Mas a 3 quadras daqui passam o 497 e o 498, tbm. - Eu sabia, mas não costumava caminhar até lá. Era em si um lugar bem ermo. No entanto, fomos.
Em meio à espera, dois homens vieram ao ponto. Um deles, mais baixo, enfurecido. O outro um homem mais alto, forte, carregando uma cesta básica. O primeiro relatava de como lhe haviam roubado a mochila. "Não tinha nada de valor lá! Eu não tenho nada de valor! Só minhas roupas do trabalho, meus documentos, cara. Meus instrumentos. O q me define!" O homem que estava comigo começou a sorrir e me olhou de soslaio, antes de conversar com o revoltoso.
- Levaram mesmo? Mas na mão grande assim? - "Assim, cara. Porra, hoje quem me olha torto eu pego."
- Os justos pagarão pelos pecadores. - "Issaê! É bíblico, né? Mas é isso mermo! Quero porrar alguém hoje. Os justos pagarão pelos pecadores! Minha mochila, cara, porra!"
O homem ao meu lado instigava-o a falar cada vez mais. O rapaz gritava. Quando veio o 498, sentou-se, furioso, ficava dando socos na cadeira. Dizia q queria pegar um. E repetia o tempo todo "Os justos, cara... alguém vai pagar por esse pecador filho da puta que levou minha mochila." O ônibus estava mais sujo q a calçada. Terra virara lama, latinhas de cerveja vazias, duas, rolando pelo chão. Várias pessoas lá dentro, o homem incomodado e incomodando, o grandalhão sentado atrás dele e eu e o rapaz da Central que me levara até ali sentados no fundo. Até que ele se pronunciou deixando que apenas eu ouvisse.
- Tá vendo? Isso é bíblico. - E começou a rir.
Começou a conversar comigo sobre o quão insanas se tornam as madrugadas. Que mundo é esse, de ataques a esmo, porque todos supostamente somos filhos de Deus. E um filho honesto, trabalhador, sendo roubado de tudo o q tem. Uma mochila. Roubaram-lhe tudo o que tinha, que ele carregava às costas. Me fez a pergunta:
- Quanta gente já perdeu igual, suas mochilas? - Foi quando meus olhos se abriram para as sombras em volta e percebi com quem eu falava. Toda a violência que se construía naquela cena, todas as palavras e até onde aquele homem me levara. Observei-o sorrir, quando o incômodo do passageiro se tornou demais e o trocador foi ter com ele. O ônibus parou, a briga havia estancado, as pessoas tentando separar. O assaltado berrava.
Pude ver aquele homem perdendo asas... Não as dele, mas aquela raiva era a de um caído. Ele provocava-se com a mágoa de um anjo abandonado. Ao meu lado, outro sorria:
- A madrugada de um trabalhador. Revoltado, incontido. - Quando separaram tudo e o ônibus recomeçou a andar, o trocador olhou para nós, lá no fundo, os únicos que não esboçavam reação, em meio à confusão. A gravata rasgada e uma cruz pendendo do pescoço.
Os dois saltamos perto do ponto final do 184 e caminhamos. Ele me falava, como talvez falasse há eras atrás:
- Aquele cara tá certo, sabe? Tem horas que violência só se pode revidar. Violência gera violência, então pra quê ficar parado quando te provocam?
- Existem momentos, talvez...
- Quer momento melhor que às duas da madruga?
- Tem horas que parece que o demônio vem mostrar seu exército, orgulhoso.
- Do jeito q tá fácil pra ele, estranho seria se não fizesse.
Ao alcançarmos a esquina de minha rua, falou-me:
- Valeu, cara, boa noite - Virou-se em um caminho totalmente oposto, voltando a descer as Laranjeiras. Só respondi:
- Boa noite, Rei das Moscas.
E Beelzebuth sorriu, antes de ir-se.
Beelzebuth, de =Drochfuil no deviantART.
9 comentários:
Agora me diz porque quando a gente não precisa de Van, elas ficam 'apurrinhando', né?
...Delícia esse teu conto-encontro com Beelzebuth - Rei das moscas...
...Cara, ler esse texto com toda sinistralidade da tua escrita e do cenário (porque escreves que é prá matar qualquer leitor) ouvindo
'I need to feel your tought'
foi um exercício de brutal concentração.
Mas esse é o Palácio elétrico do Troll e em eletricidade, o choque é algo esperado ou prospectado por leitores mais astutos...
...Agora sobre o texto é o seguinte:
O assalto, a morte ou a má sorte podem vir a qualquer instante, mesmo.
As agressões e todas as vilanias, são humanas e podem nos pegar na calada da noite ou na boca do dia.
...
Amei penetrar na madrugada do personagem vendo cenas de suspense com a figura molhada com 'fear for devil', 'borrando-se' de medo...
...Inútil seria o Eu-Rei-Troll, mesmo 'imortal' ousar imaginar-se tentando 'finalizar' o meliante beelzebuth - Rei das moscas...
Carinho,
Mai
Eu adoro quando por algum motivo a gente repara, ainda que rapidamente, em pessoas que estão ali na mesma situação que a gente. Seja sala de espera de médico, seja ponto de ônibus, seja fila do supermercado. Adoro reparar nessas pessoas e inclusive muitas vezes imaginar de onde elas vieram, o que aconteceu pra que elas estivessem ali exatamente no mesmo lugar, muitas vezes na mesma situação que eu. São caminhos que se encontram o tempo todo. Teve um filme, não lembro o nome, que explora isso muito bem. Caminhos diferentes que se esbarram o tempo todo. Incrível como um mundo desse pode ter bilhões de histórias acontecendo ao mesmo tempo, e incrível como elas sempre se entrelaçam.
Acho que fui confusa. Whatever.
Beijo, adorei o post.
seu olha r fino, preciso, algo irônico, su acapacidade de descrever cenas, ver além, ver minúcias, faz do ato de ler seus escritos uma delícia...bjs
As madrugadas sempre nos trazem surpresas interessantes, não é mesmo, meu caro Troll?
Mas certos encontros com o Rei das Moscas acontecem de forma calma de vez em quando.
Trocas de olhares e meneares de cabeça e posso dizer, meu digníssimo Rei que Beelzebuth sabe como marcar presença.
MAI:
Caríssima, não é o Troll imortal, pois jamais tivera ou creio q teria tamanha pretensão. Ele existe e existirá pelo tempo q for necessário, chegando e saindo nas horas certas, sempre. De toda forma, Beel é uma força a ser respeitada, jamais que este que vos fala ousaria tentar confrontá-lo tão diretamente.
SISA:
Caríssima, não foste mais confusa do que o mundo por vezes faz questão de ser. Ou seja, foste isso sim extremamente pertinente. ;-)
IARA:
Caríssima, sabes que seus olhares são e sempre serão muito bem-vindos sobre estas linhas.
TYR:
Me pergunto pq ele tem teimado em marcá-la cada vez mais, não?
Porque Beel sabe sobre a importância que possuo nas linhas espiraladas que são traçadas e nas várias trilhas que se abrem diante dos meus olhos e por saber, ele sabe o momento certo de aparecer e marcar a presença dele em meus passos. Um respeito mútuo de dois xadrezistas e andarilhos do Abismo.
Nino, vou ler depois e comentar. Estou com uma tendinite que me arrasa. Mesmo assim, deixei um desafio no meu blog, que aliás, nem tenho certeza se você já não colocou no seu.
Beijinhos... Estou com saudades de vocês.
Tem gente q ta andando muito de onibus pelo jeito..rs otima historia!
ah, e tbem deve ta trabalhando muito? ou se divertindo muito? espero q o ultimo! rs mas te conhecendo, deve ser os 2 tudo ao mesmo tempo agora! rs afinal, 1 semana sem post novo??Rs (ta, nao q eu possa falar nada, mas enfim, eu falo!rs )
Beijo gde!
Rei das Moscas... Nunca tinha ouvido esse título antes!
Essa história me fez lembrar do meu taxista com suas histórias de arrepiar.
Beijinhos, nino.
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