Prólogo: Amanda...
Nada... acordar sempre tem essa horrorosa sensação do vazio. Do lado de fora, só o escuro da noite. De que adianta a janela, quando pelo jeito ela está quebrada? Debaixo da coberta, pelo menos, eu posso fingir que nada disso é real. Mas não posso ficar ali. Os bipes do alarme não me deixarão. O painel piscando, azulado, bem na minha cara, só vai voltar em mais cinco minutos, se eu não levantar. O jeito é sacudir a cabeça, espantar as teias e areias do sono e deixar que o frio gélido do chão aos meus pés me acorde de vez.
Dor de cabeça... na capa da última revista que consegui começar a ler, dizia que todo mundo tem. Culpavam os remédios que tomamos para dormir. Então não posso reclamar, não é mesmo? A outra opção é virar um zumbi, nunca descansar. Prefiro a dor de cabeça. Ainda que em certas manhãs pareça que pode ser mais confortável atravessar um lápis de orelha a orelha. Essa é uma daquelas manhãs. O pé toca o chão, enfim. O gelo me abraça até os ossos e só então dá pra levantar.
O quarto está quente, úmido... incômodo. Preciso consertar o condicionador de ar. Fazem dias, aliás. Ah, que seja! Melhor assim que um dia não acordar, porque se está congelado. O corredor é estreito, no caminho até o café da manhã, e as luzes demoram a acender. Preciso consertá-las, também. Ela já está lá. Aquela menina. É estranha, muito pálida, os cabelos loiros e bem desgrenhados, do tipo que pelo visto a briga com a escova não valeria a pena. Os olhos de um azul fraco, esquisito. Me olha, já, com aquele suspirar profundo de aborrecimento e falava.
- As luzes do corredor est-
- Eu tenho que consertar, eu sei. Você já falou isso ontem. E provavelmente vai falar amanhã, também.
Ainda sonolento, eu sei que a voz soa grosseira e por isso a menina cala a boca. Esse olhar dela... tudo é novo demais, pra guria, não dá pra culpá-la por se incomodar com qualquer coisa fora do lugar. Eu cambaleio até poder olhar lá fora... parece que milhares de estrelas cadentes passam pelo céu. Esfrego os olhos, enfim indo me sentar.
Ela já serviu minha aveia com leite. Reclama sempre que quer mel, mas não dessa vez. Depois da primeira patada, sabe ficar quietinha. E aí quem se incomoda sou eu. De estar aqui, comendo, com ela me fitando em silêncio. O vazio sempre é o pior disso tudo. Eu suportaria essa dor de cabeça o tempo que fosse, se lá de fora viesse algum som, qualquer coisa que entrasse pela janela, mas de verdade.
- Só mais dois dias, pra você ver o seu pai. Aí vai poder dormir e comer como quer. Até lá, a gente se agüenta.
A minha risada acaba saindo amarga. Sem qualquer naturalidade. Não adianta sequer falar do pai, com ela. Parece que ela não liga. Tem cara de o quê, 14 anos? Por aí... essa fase da rebeldia. Mas bem piorada, depois de tudo que ela já passou. Deve sentir saudade de tanta coisa. Eu acho que nunca conheci isso, ao menos não desse jeito. Só uma pessoa, realmente... e essa possivelmente passa os dias sonhando mil maneiras de me ver morto. Engraçado, isso. Quando você já viu até mais de mil maneiras de se morrer. Talvez não engraçado... palavra errada. Mas não gosto de pensar em "trágico", também. Então deixo a coisa indefinida.
- Ele não é o meu pai...
Ela quebra o silêncio dos meus pensamentos e me faz suspirar, de novo. Esse jeito como fala, é sempre assim. Que droga...
- Quem mais você tem? Porque eu que não sou seu pai mesmo. Ele pelo menos tem os papéis pra provar. - tô dando outra patada, eu sei disso. - Você sabe que eu só estou-
- Fazendo o seu trabalho, eu sei!
A menina grita aquilo, batendo na mesa e deixando a colher de plástico escorregar até o chão. A tigela de aveia e leite derramando um bocado. Se levanta, saindo a passos apressados, em direção ao quarto. Ela e seus cabelos desgrenhados. O nome é Amanda, e tem horas que eu acho que ela nunca queria ter saído do coma. Faz quatro meses que está comigo, mas pelo visto é uma eternidade, pra ela. Fica me perguntando o tempo todo sobre o tempo que perdeu, todos os acontecimentos, coisas que eu nem sei responder. E vive chiando que eu não tenho uma enciclopédia ou coisa assim, nem mesmo no computador. Alienado... certamente, eu devo ser um alienado. Se você for pensar bem nessa palavra. Conheço pouca coisa que me definiria melhor.
Tudo arrumado, eu presto atenção no silêncio. Quando se sabe ouvir direito, nunca é apenas silêncio. O zumbido de algo funcionando, da eletricidade correndo. Me disseram que já há muito tempo nós homens não conhecemos mais o silêncio. Tem quem fale que jamais conhecemos, falando de uma pesquisa bem antiga, em que teriam descoberto que a própria Terra emite zumbidos subsônicos dissonantes. Então só deve existir silêncio no frio do espaço, mesmo. E na morte. Melhor nem pensar nisso. No quanto essas duas coisas combinam. Ao menos assim, o zumbido que eu ouço é o de um silêncio não tão desconfortável.
Subo as escadas, com algum esforço. Até sentir que não há mais esforço algum. Perco meu peso, ao alcançar os últimos degraus, e sorrio, enfim, alcançando o eixo. Sentindo tudo girar à minha volta, por alguns segundos. A breve desorientação. Respiro fundo, me apoiando e me puxando pelo caminho até a cabine. A escotilha demora na checagem da pressão interna. Eu preciso consertar isso, também. O abrir traz o chiado de um vácuo momentâneo, me deixando entrar. As telas em seus sinais e avisos azulados e verdes, e eu me prendo à cadeira, para fazer minhas checagens matinais. Do lado de fora da Kuaray, um céu negro de estrelas cadentes, que tentam nos seguir, em vão, concordando com os mostradores: estamos em pleno Salto. Ficaremos assim por pelo menos mais cinco dias, até chegarmos a Europa.
Os únicos sinais alaranjados estão em sistemas de suporte de vida: as janelas dos quartos, algumas escotilhas, o sistema de aclimatização. Amanda não reclama sem razão. Quer que pelo menos as janelas mostrem alguma paisagem diferente, pra variar. Mesmo sendo apenas um holograma. Só isso já impede uma pessoa de enlouquecer de vez, no espaço. Eu deveria consertar pelo menos a do quarto dela. Me solto da cadeira e saio flutuando da cabine, em direção às ferramentas.
Ao pé das escadas, lá está Amanda, de novo. Observa a tela do sistema geral de comunicação da nave.
- O que significa Amanajé?
- "Mensageiro". É de alguma língua bem antiga, todas as naves da Bras e a maioria das estações do sistema solar usam esse programa. É bem melhor que o antigo Hermes.
- Bras... que jeito estranho de pensar em um país. Tudo virando empresa, desse jeito.
- Minha avó falava de países e comentava essa transição. Dizia que isso aconteceu quando as pessoas perderam o referencial de seu território. Quando todos os povos precisaram deixar a Terra. Ela estudava essas coisas de história.
A menina desliza os dedos pela tela, com seu jeito curioso que às vezes, admito, é divertido de ver. Não é de todo má, está apenas confusa. Deve ser difícil, dormir tanto tempo, acordar séculos depois, dentro de um microondas. Mas cada vez que dá nela de me contar do mundo em que vivia, quem se perde sou eu.
- Acará é aquela outra nave, né? A que ia saltar logo atrás de nós?
- Ã-hã.
- Por quê você não quer ler a mensagem dela?
Amanda sabe ser intrometida.
- Por que me basta UMA de vocês mulheres, pra questionar tudo o que faço. Agora dá licença.
Deixo-a sozinha no corredor e saio bufando, até o quarto dela, já escolhendo as ferramentas. Foi a terceira patada em menos de duas horas. A menina está prestes a me fazer quebrar um recorde.
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Algo BEM diferente, admito. Mas tenho o sonho de publicar um livro de ficção científica e espero críticas sinceras e construtivas, de quem por acaso tiver chegado tão longe em sua leitura. *rs*
Glossário: Kuaray - eclipse solar, do Guarani; Amanajé - mensageiro, do Tupi; Acará - garça, ave branca, do Tupi.
Abraços do Troll.
7 comentários:
Eu cheguei longe. Li todo o prólogo de um projeto que será bem-vindo aos meus olhos.
O Iniciar de tudo isso, desponta a curiosidade. Pude presenciar que Amanda era uma menina que esteve em coma por séculos, mas fiquei a me perguntar:
- Por que ela entrou no coma? O que aconteceu realmente?
Sabes muito bem, que sua esposa é deveras curiosa. Deixei-me envolver-me mergulhando nesse ambiente que vai se transformando aos poucos até nos darmos conta de onde estamos realmente. Fiquei tentando imaginar sobre a história do rapaz que é Babá de Amanda e bom...
Ao menos esta leitora e esposa ficará aguardando o próximo capítulo de sua Sci-Fi.
Sabe cunhado.. serei breve em meu comentário desta vez. Se vc não levar adiante, eu juro que te capo.
A historia é envolvente, salta aos olhos e leva o leitor ao ambiente. Eu sou fanático por ficção. RPGista frustrado nesta ambiência.
Parabens, excelente texto.
Oi Marcelo, bem legal, gostei mesmo. Leve a diante, ok? Muito interessante. Abços, Zilli (ps: e avise qndo postar o resto)
Fala Addam
Um inicio interessante... envolve o leitor mostrando um personagem sem paciência (que particularmente me agrada) mas não inconsequente, e uma menina que pode ter muita história pela frente!
Gostei bastante do início e espero poder ler mais!
valew!
muito interessante..
Confesso que nem ia ler agora quando vi o tamamho, porém como sou muito curiosa iniciei a leitura e não resistir de ler o restante.
Gostei!É bacana quando você começa a ler e o texto te supreende o tempo inteiro, nunca é o que esperamos ser, aguçando cada vez mais a nossa curiosidade.
Aguardo continuação...
Beijos e flores!!
Carissimo, so agora arrumei paciencia p ler..
ando muito dispersa ultimamente.. dando conta de pouca coisa.
Ficçao cientifica nao é muito minha praia, mas diria q pra um comeco ficou bem interessante!
desenvolva q eu tento opinar melhor! rs
e q esse como todos os seus outros sonhos tbem se realizem! to sempre na torcida!
(ah, amanha tem post novo e especial no confesso! rs te espero la!)
beijo gde! otima semana!
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