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quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Golem no divã *via receituário*

Acordava aflito, com a mão sobre o peito, fingindo que tinha algo a agarrar, ali. Reflexo involuntário de quem teve coração, algum dia. Os dedos de frio metal deslizando, arranhando o próprio peito de pedra. Era Pedro, por causa disso. Se tinha outro nome antes, não se lembrava mais. Se tinha sonhado algo pavoroso, para acordar tão bruscamente, também não sabia. Mas provavelmente não. No sentido que provavelmente um computador não sonha com seus arquivos, durante sua defragmentação.

Erguia-se, gigante, grande demais para lembrar como era se levantar sobre pernas. O que quer que o sustentava, em nada lembravam os músculos de outrora. E aqueles certamente não rangiam tanto a cada passo. A quem via e ouvia, talvez parecesse uma dificuldade enorme, mas não era. Simplesmente ainda se lembrava como caminhar e o fazia quase naturalmente. Pequenos pedaços, placas, porcas e parafusos que ia perdendo pelo caminho, caíam só porque não eram mais importantes. Mas não o deixavam mais leve.

Naquele dia, trilhava um caminho antigo. Sem motivo aparente, estava ali. O que já fôra terra, mato e os sons de pássaros substituído por concreto, pedra, ferro, frio… como ele. Mas algo faíscou, súbito, por trás de seus olhos de fibra e vidro. Talvez algum elástico ou correia arrebentara, porque aquilo era um impulso. Os estrondos de uma corrida desabalada ameaçavam rachar cada janela, cada vitrine, cada tela. Ele tinha pressa, sem saber porque. E correndo como desaprendera a fazer, ia se despedaçando. Não sentia aquilo, não percebia cada circuito e placa que queimavam, dentro de si. Os pedaços daqueles dedos que iam ficando, fincados e presos ao chão, enquanto arrancava pedaços imensos do concreto e asfalto, ao fim daquela trilha.

Era uma tarde de domingo, sobre a grama, quando das lágrimas erodiu-se a terra e surgiu aquele buraco que ele agora perdia tudo o que restava, para cavar. Sem motivo nem lembrança alguma, exceto da grama… a última faísca estourava de seu corpo num rangido agudo e tudo cessava. Mais alguns centímetros apenas… uma distância grande demais para continuar cavando.

Não morreu, porque não podia morrer. Mas desligou-se, em pedaços… sem alcançar o próprio coração.

6 comentários:

Tyr Quentalë disse...

A sensação de vazio alcança-me através desse novo manuscrito, onde enxergo o golem chegando ao seu limite, sem ao menos se lembrar do que o impulsionou ao extremo de despedaçar-se sem alcançar o que tanto desejava alcançar. Enquanto um ser etéreo, descansa a esses restos, observando o golem em seus resto, sabendo que não muito distante ele está do alcance do coração.

Anônimo disse...

Achei interessante a humanidade presente nele, mesmo se despedaçando. Porque tantas vezes fazemos isso, "sem saber porque", sem ter a paixão que achamos que deveria ter, e vamos nos despedaçando pelo caminho, procurando uma paixão.
E muitas vezes é despedaçados, arrebentados, que ficamos a poucos centímetros dela... quando poderíamos ter ido por inteiro.
Mas o que mais achei interessante é que você colocou a paixão de Pedro no chão. Segura. Isso dá tempo dele se refazer, né não? :)))

beijocas.

Anônimo disse...

TYR:
Coragem? Talvez... mas há muito mais um temor de perder-se demais... por tempo demais. De nunca mais saber onde cavar.

MAMA:
O importante é ainda haver tempo para voltar a existir, assim. Nem sempre conseguimos, não é mesmo?

bete disse...

li e fiquei me lembrando do homem de lata do mágico de oz, depois do homem centenário, com o robin williams ( filme) e adorei o comentário da Mi. de resto é vc em excelente forma, escrevendo deliciosamente. bj e saudade

Macaires disse...

Talvez seja esse o destino do homem: tornar a si próprio um Golem, escravo dos próprios desejos, pois os sentidos característicos do ser humano ele já vem perdendo, a razão, o coração, sentimentos como o amor estão cada vez mais raros, hoje em dia, e a humanidade está cada vez mais a despedaçar-se!

Gostei do seu texto, me fez refletir!
Abraço,
Marília

Anônimo disse...

IARA:
O que faz valer, escrever, caríssima, são presenças tão especiais que vêm ao Palácio ler-me.

MACAIRES:
Muito prazer e seja bem-vinda ao Palácio, caríssima. O que nos tornamos, senão construtos desse mundo absurdo?