Uma questão extremamente interessante e aparentemente um tanto controversa, no meio sadomasô, é a possibilidade de um Top ou bottom ter de lidar com com uma relação baunilha - normal, amorosa, extra-BDSM - mantida pelo outro lado do chicote. Já presenciei diversas situações nesses termos, com outros praticantes.
Peço desde já que a interpretação parta da premissa que a parceria baunilha seja tomada como ao menos parcialmente, se não plenamente, desfavorável - não-liberal - à existência de um relacionamento extra-conjugal, mesmo que tão somente enquanto extravasamento do fetiche do outro. Incorro ainda no risco de ser taxado aqui como "arauto da traição" - já até ouvi o termo dirigido a mim, uma vez - mas é muito complexo julgar relações poligâmicas em meio à cultura judaico-cristã na qual fomos criados. Ainda assim, aceito o risco. Como tudo o mais discutido aqui, qualquer interpretação é extremamente subjetiva e a noção de "receita de bolo", enquanto solução dos empecilhos apresentados, é por si só limitante ao assunto. Fica claro que exponho minha opinião com base no que conheci e vi, acontecer, a respeito.
Dou o pontapé com a constatação de que tal ocorrência é muito mais comum - e menos proibitiva - quando o lado Top é o detentor dessa relação extra-BDSM. Soaria um bocado óbvio, aqui, citar os motivos disso indo muito a fundo, dadas todas as prerrogativas do lado Dominador sobre a relação D/s em si, mas é, senão a ocorrência mais lógica dessa característica, a mais corrente no meio. Lógica pela crença, de muitos, que o Top não deva se envolver emocionalmente com seus bottoms - sem diferenciação de gênero. Dessa forma, é por vezes até costumeiro imaginar que por trás da empunhadura do chicote haja algo mais, a ser protegido do que ocorra no meio. Esse ato de proteção é, afinal, algo que a maioria precisa fazer até mesmo com sua célula familiar mais próxima, mesmo não havendo um laço amoroso envolvido. Já é parte da prática, conseguir separar sua vida pessoal e profissional de seu alter-ego BDSM.
Mas é a existência de relações baunilhas mais estreitas do lado bottom que se apresenta como sendo a mais limitante. Mesmo se considerarmos que a coleira seja estritamente D/s, sem sadismo e masoquismo envolvido, há uma série de práticas de Dominação psicológica que depende de uma liberdade de tempo e ação que esse bottom não possui, para ofertar ao Top. Lembro aqui que qualquer risco sério à integridade não apenas física, mas psicológica e emocional, é uma quebra dos termos de Sanidade Segurança e Consensusalidade - embora a parte emocional seja muito discutida, assim como o conceito de segurança. Para muitos Tops, especialmente homens, a existência de um relacionamento assim por si só já impossibilita o encoleiramento. Compreensível, quando o motivo é a necessidade daquela liberdade de ação que o/a sub não pode ofertar, mas que em certos casos soa hipócrita, com afirmações como "ela não pode se entregar de verdade, pra mim", quando o mesmo não se encontraria, muitas vezes, disposto a suprir necessidades emocionais da parte bottom. Outro motivo bem comum é também compreensível: "vai que o lado de lá é bravo e descobre". Não há qualquer covardia nesse ato, é tão somente a constatação de que tanto Top quanto bottom podem sofrer retaliações pela manutenção de um relacionamento D/s. Todos nós temos o direito e dever de pesar as possíveis conseqüências de nossos atos.
Dito isso, entretanto, é uma ocorrência que também gera novas possibilidades. a serem exploradas por uma mente mais criativa, em meio ao adestramento e à convivência BDSM. Psicologicamente, há por si só a euforia do proibido, da ameaça constante, do flerte com o perigo, sem que para isso precise haver a quebra da segurança, em cena. Nesse ponto, a coleira fica muitas vezes por um fio, na dependência da capacidade do bottom de manobrar ao redor de suas limitações baunilhas. Conseguir estar pronto à submissão sem arriscar a relação se torna parte de suas atribuições, enquanto o Top assume para si a responsabilidade de não deixar marcas óbvias e difíceis de explicar, com o extravasamento de seu sadismo ou as eventuais punições à parte submetida. O jogo psicológico pode se tornar muito mais presente e intenso, também, e as marcas desse podem ser despistadas com um "não estou bem, hoje".
Os cuidados com a parte física passam ainda pela necessidade de um diálogo muito mais aberto que em outras relações de servidão, pois o Top precisa, por exemplo, saber que a presa vai passar o final de semana na casa de praia. Naquela semana, não pode deixar-lhe com marcas em quase parte alguma do corpo. Certas práticas, como bloodplay e knifeplay, são dificílimas - se não impossíveis - de serem postas em prática sem riscos diretos, mas quase todo tipo de tortura genital ou aos mamilos é possível. Sessões de spanking mais intensas, por exemplo, precisam de um aviso do tipo "essa semana, vc vai se esconder um pouco mais dele/a". Os termos no contrato de submissão precisam dar margem a um pouco mais de diálogo e a safeword - palavra que é direito do bottom ter e saber, que interrompe a cena quando pronunciada - pode se tornar uma salvaguarda para aquelas torturas imprevistas, que o bom improviso possa trazer à cena, mas q o bottom tema expô-lo demais, depois.
Já ouvi e li argumentos que propunham que a necessidade de tais cuidados dariam à parte submetida o "direito de abusar" de tais condições específicas, para exercer ela também um certo controle sobre todo o cenário imposto pelo contrato D/s. Sou da opinião que absolutamente TODA relação de poder é uma via de mão dupla, de qualquer forma. Mas mais importante que isso, e aqui passo as considerações à primeira pessoa, se me vejo insatisfeito com uma coleira, estou em pleno direito de tirá-la da submissa. Pelo mesmo motivo que também nunca me senti obrigado a encoleirar ninguém. Se um bottom decide tomar liberdades com seu contrato por conta da situação extra-D/s, é um risco que está assumindo, como em qualquer situação de questionamento ao Top ou desrespeito ao mesmo.
aaron, by ~porsylin on deviantART
4 comentários:
Com o olhar atento e o coração aberto para os tomos trazidos pelo novo Senhor do Castelo, eis que em encontro aqui a ler este tomo sobre caminhos não tão alienígenas para mim. Perfeito em sua explicação, venho a concordar com vários apontamentos seus, Milorde.
Assim como sabes perfeitamente o quanto de tudo isso corre em minhas veias, ou como meus olhos brilham a respeito disso tudo.
"São nos verdadeiros desafios que tudo se transforma em uma verdadeira iguaria"
muito interessante e lúcido o post meu amigo, e ceio que muito do que há nele se aplica a qualquer relação, não só a relações BDSM. basat as pessoas serem mai ssinceras consigo mesmas e objetivas. se divertirão mais com mais responsabilidade se tiverem com seus proprios sentimentos.
beijos.
Bom, eu não conheço praticamente nada do que foi descrito no texto... mas assino embaixo do que disse a Iara. sinceridade e respeito são fundamentais - conosco e com o outro. Sem isso, não funciona.
Beijoca :)
TYR:
Sempre um prazer vê-la vir compartilhar de mais essa sombra, claro.
IARA:
Clareza é essencial, naqueles relacionamentos que queremos ter como realmente duradouros. Amizades, inclusive.
FLAH:
Respeito, caríssima, acima de tudo. Sempre.
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